sábado, 9 de abril de 2022

A loucura de Mário Cláudio

"Por terras da naturalidade dos que haverão de dar começo à história desta Casa das Virtudes, queremos dizer, pelo que seria espaço da freguesia de São Tiago da Carreira, do alfoz de Santo Tirso, andarilhou o taumaturgo São Rosendo, que os manuscritos referem como «episcopus dumienses». Se outros houve, antes, e outros haveria, depois, atentos ao solo onde se lhes firmava a marcha, poucos conheceriam o mesmo solo, assim, de forma que, como um fogo, se comunicava aos músculos e às veias."
Assim abre "A Quinta das Virtudes, romance de Mário Cláudio que encontrei por acaso enquanto vasculhava pela prateleira e que é dos livros mais extraordinários que já tive o prazer de ler. 
Digo que li, mas na verdade só consegui chegar à página 30, ao fim de uma hora e meia de leitura, dividida entre 2 dias. Algo raro para alguém como eu, que sou um pouco obsessivo, e quando começo algo (seja um livro, um filme, um raciocínio, o que for), fico comichoso até que o dê uma conclusão. Porém, não consegui terminar "A Quinta das Virtudes", nem sequer cheguei à página 50, que é o máximo que dou a um livro para me cativar. 
Eis um exemplo do porquê:
"Com louvável precisão, enumerava ele, piscando muito, no acto de decifrar nomes e topónimos, condições minudentes e assíduas reservas, molhando os beiços, a intervalos, num cálice de moscatel, o que originava a que se desprendessem, de sua língua, a modos que consteladas, realmente, palavras como Lagares e Aveleda, boucinha e passal e outras que tais."
A prosa... sim, a prosa. É como lama. Estou preso. Não consigo avançar um centímetro sem que alguma vírgula maldita me prenda. E o que está a dizer esse homem? Que raio nos está a dizer Mário Cláudio? Que língua é esta, meu Deus?
Este tipo de linguagem é precisamente aquilo à que George Orwell se referia no ensaio (no inglês original) "Politics and the English Language", escrito há quase 70 anos. Nele, Orwell criticou uma nova tendência na língua inglesa, uma que ele considerava ser intencionalmente vaga e insonsa, à semelhança do discurso usado pelos políticos.
Mas, de acordo com Urbano Tavares: «A Quinta das Virtudes, pelo intenso colorido verbal, pelo caudal riquíssimo da informação, pela beleza e veracidade dos grandes quadro históricos (...) é um daqueles romances de ampla respiração que fazem data numa leitura»
Se repararem bem, verão que Urbano Tavares não disse realmente nada. Pelo menos nada de valor. Sabem porquê? Porque, eu punha as minhas mãos no fogo, nem ele terminou o livro.
"Celebrou-se o casamento de José Pinto de Meirelles com Dona Francisca Clara de Azevedo Pinto Aranha e Fonseca, aos vinte e quatro de Julho de mil setecentos e cinquenta e seis, na igreja de São Bento da Vitória. Era a festa de Santa Cristina, e selecionara a noiva tal data, entre outras duas propostas, em virtude da dedicação que sentia, desde há muito, pela mártir, cuja hagiografia lera, entre outra heteróclita narração de cordel, por uma entrada de Outono, em que um trovão se diria, infinita e ameaçadoramente, suspenso das quebradas."
O mais triste nisto tudo, e o que me causa maior frustração, é que enterrado debaixo de todo este palavreado, estão duas personagens que eu gostaria de conhecer melhor. Acho que os seus nomes são Francisca Clara e José Pinto de Meirelles; está aqui algures uma história de duas pessoas (possivelmente mais) algo humanas, uma história que perspetivava ser interessante, so que é necessário criar empatia com as personagens para se querer continuar a virar as páginas, e torna-se impossível fazê-lo quando 90% da narração é dedicada aos gatos e às paredes e aos pardais e aos servos e às colinas e ao clima, e mais clima, numa prosa lamurienta, elitista, que nos obriga, não só a ter o dicionário aberto, mas, também, a tomar comprimidos para a concentração, de modo a conseguir lê-la.
E olhem que gosto de livros difíceis, livros que me fazem suar, franzir o sobrolho, enquanto leio e releio a mesma coisa 50 cinquenta vezes, pois a mente começara divagando a meio. E, como já disse, quando começo um livro, tento sempre terminá-lo, por mais horrivel que seja; consegui acabar "I'm in Love With a Popstar", de Margarida Rebelo Pinto, por exemplo. 
A diferença é que em livros como " O Outono do Patriarca" e "Rumo ao Farol" há um propósito para a prosa pouco digestiva, há um conceito por detrás. No caso do primeiro, o objetivo é expressar a fusão de um homem com o seu mito; no segundo, retratar a permanência de um momento, de uma memória. Estes autores souberam também focar-se nas suas personagens, que, ao fim e ao cabo, são a parte fundamental de uma história, de qualquer história, pois é através delas que nós vivemos dita história.
Mário Cláudio não fez nada destas coisas. Em "A Quinta das Virtudes" não consigo ver um propósito para a prosa histórica e bibliotecária, para além do facto de o próprio autor ser um historiador e bibliotecário; tampouco vejo interesse em retratar as pessoas que habitam este mundo, ficando, desde a primeira página, que as estrelas não são elas, mas sim a prosa.
Um autor tem sempre uma escolha, quando se senta para escrever um livro: escrever para comunicar com um público, ou escrever para se agradar a si mesmo. 
Kafska é um exemplo de alguém que escreveu somente para si mesmo, daí as suas histórias terem estruturas tão pouco convencionais, e daí, também, ter pedido ao irmão que queimasse as suas obras quando ele falecesse (pedido que, felizmente para nós, o irmão ignorou). 
O resto de nós - e estou a me incluir aqui, não por estar no mesmo patamar que Mário Cláudio ou Kafka, mas por ser um mero aspirante - escreve para um público, quer o queiramos admitir ou não. 
Para mim, os grandes escritores são aqueles que, face a essas duas opções, escolhem a terceira: escrever para si mesmos, tendo em conta que as suas obras serão lidas por terceiros.
Mário Cláudio escreveu para si próprio; escreveu, talvez, para se expressar artisticamente, de uma forma que lhe desse prazer, ou talvez ainda, para dar flex, para se exibir perante os seus colegas de profissão. Seja como for, uma coisa é certa: não teve o público em mente. Se tivesse tido, não teria enterrado a sua história de tal maneira debaixo da prosa mais sufocante que alguma vez li.
"E, à medida do progresso da ereção da Casa das Virtudes, eis que, em Francisca Clara, que tão escassamente se havia afeiçoado ao Porto, uma extentíssima efabulação da cidade se ia desenvolvendo, apreendida de dois livros, glosada por um sonho que, de modo sorrateiro, nela se imiscuía. Era uma urbe esmaltada, em pergaminho, que se lhe deparava, assim, a qual Menelau, cônjugue inábil de Helena de Tróia, gloriosamente fundara, logo de belicosos lacedemónios a povoando, e a ela vinham encostar-se as galeras, estivadas de ânforas de vinho e de azeite, a descarregar, quando era caso disso, um filósofo togado, de barba marmórea, que os jovens doutrinava, com princípios rigorosos e implacáveis silogismos."
Um autor tem outra escolha, quando se senta para escrever um livro: priorizar o conteúdo, a mensagem, a história, ou a forma como ela é transmitida, o embrulho, a prosa. Entendam que, quando digo história, neste contexto me refiro ao que está a ser transmitido: a moral, a mensagem. Para mim, é isso o essencial, e o que fez de histórias como o "Capuchinho Vermelho", ou mesmo o Épico de Gilgamesh, histórias eternas, que vêm sendo transmitidas oralmente desde os primórdios da raça humana, quando mal sabiamos falar, quanto mais escrever.
Infelizmente, são livros como "A Quinta das Virtudes" os que mais presam os críticos portugueses (e podia referir os de cinema também, mas este é um blogue literário...), e enquanto assim for, não vamos andar para a frente. Esses senhores se consideram os donos da língua, acham-se superiores às pessoas comuns, por isso criam a sua própria linguagem e lá vão eles, masturbando-se uns aos outros, premiando-se uns aos outros, parabenizando-se uns aos outros. Depois perguntam-se por que essas mesmas pessoas, que eles desprezam tanto, não compram os seus livros. E porque a literatura em Portugal está o que está: uma miséria, dominada por duas ou três Editoras, disfarçadas de vinte, que vão dividindo os lucros entre si, importando bestsellers, vendendo livros de culinária e, quando tudo o resto falha, fazendo mais uma edição de Saramago ou Eça, para promover a literatura. 
Tudo o que é português é velho! Os novos não têm espaço, não nas livrarias, não nas Editoras. As nossas únicas alternativas são vanity publishers como a Chiado e a Cordel d' Prata, que, desde que lhes paguem, publicam qualquer um (o que também não promove a qualidade).
Mas, como anunciou Eduardo Nascimento, os ventos vão mudar. Há de surgir um Bukowski, um Hemingway, alguém que vá revolucionar a arte da literatura em Portugal; alguém que mostre a esses bodes velhos que verdadeiras histórias não necessitam de palavras caras, nem de grandes floreados, verdadeiras histórias podem ser entendidas até por crianças, e contadas por bêbados em bares sujos. Há de vir alguém que mande lixar as grandes livrarias, onde caras pretas não aparecem, onde as vozes dos marginalizados não são ouvidas e as histórias das minorias não são contadas, e então essa pessoa vai dizer: "Chega! Já que eles não nos aceitam, criaremos o nosso próprio caminho".

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