segunda-feira, 11 de abril de 2022

Recomendação - A Sul de Nenhum Norte

"A Sul de Nenhum Norte" é Bukowski em toda a sua irreverência, em todo o seu esplendor e displendor; neste livro encontrará alguns dos contos mais inesquecíveis que alguma vez lerá, numa escrita tão grosseira, tão crua, tão dispretensiosa, que parece ter sido transcrita diretamente do papel higiénico em que fora cuspida, para as páginas em que acabou preservada.
De acordo com Neil Gaiman, para se escrever é necessário fazermos o equivalente a correr pelas ruas nu. Se isso é verdade, então talvez Bukowski seja o maior escritor de todos os tempos, pois a sua escrita é a mais nua, mais destemida, mais livre que já li. 
Quantos autores se podem gabar de ter começado uma história assim:
"Lembro-me de uma vez, tendo calçado os sapatos de salto alto da minha mãe e tendo-me posto a espreitar para as minhas pernas num espelho, erguendo lentamente um trapo qualquer, por ali acima, devagarinho, cada vez mais, como se estivesse a espiar as pernas de uma mulher, comecei a tocar à punheta, tendo sido interrompido pela entrada de dois amigos que vieram lá a casa."
Muito poucos... Muito poucos mesmo.
Agora, nem todos os contos neste livro são geniais; alguns parecem os desvaneios de um louco, escritos à pressa, às 2 da manhã - arrancam com força, vagueiam por um bocado e terminam abruptamente, sem ter ido a lado nenhum. Mas são todos únicos, únicos, empolgantes e extremamente divertidos. E, no fundo, não é o que a gente quer quando pega um livro?
Entre os contos presentes neste livro destaco como favoritos: "Classe", "O paraíso não é por aí", "Dois borrachos", "Tira lá os olhos das mamas ó manjerico!", "Cristo de patins", "Todos os merdas do mundo e o meu cu" e "Confissões de um homem suficientemente louco para viver com as feras", mas verdadeiramente, poderia metê-los a todos, ou quase todos, nesta lista.
Não recomendo a alguém que nunca leu Bukowski começar por aqui, pois o seu estilo anti-plot, anti-edição, anti-sociedade pode ser um pouco avassalador. Recomendo que comecem pela origem; leiam "Correios" e fiquem a conhecer Henry Chinaski, alter ego do autor, que faz várias aparições neste livro de contos; ou então leiam alguns dos seus poemas, que apresentam o lado mais sensível de Bukowski e, ironicamente, o mais prosaíco também; ou então leiam o que que bem entenderem, também não faz muita diferença. O importante é que o leiam, pois Henry Charles Bukowski foi, e continua sendo, uma das vozes mais únicas, mais profundas, mais honestas que alguma vez praticou a arte da escrita.

sábado, 9 de abril de 2022

A loucura de Mário Cláudio

"Por terras da naturalidade dos que haverão de dar começo à história desta Casa das Virtudes, queremos dizer, pelo que seria espaço da freguesia de São Tiago da Carreira, do alfoz de Santo Tirso, andarilhou o taumaturgo São Rosendo, que os manuscritos referem como «episcopus dumienses». Se outros houve, antes, e outros haveria, depois, atentos ao solo onde se lhes firmava a marcha, poucos conheceriam o mesmo solo, assim, de forma que, como um fogo, se comunicava aos músculos e às veias."
Assim abre "A Quinta das Virtudes, romance de Mário Cláudio que encontrei por acaso enquanto vasculhava pela prateleira e que é dos livros mais extraordinários que já tive o prazer de ler. 
Digo que li, mas na verdade só consegui chegar à página 30, ao fim de uma hora e meia de leitura, dividida entre 2 dias. Algo raro para alguém como eu, que sou um pouco obsessivo, e quando começo algo (seja um livro, um filme, um raciocínio, o que for), fico comichoso até que o dê uma conclusão. Porém, não consegui terminar "A Quinta das Virtudes", nem sequer cheguei à página 50, que é o máximo que dou a um livro para me cativar. 
Eis um exemplo do porquê:
"Com louvável precisão, enumerava ele, piscando muito, no acto de decifrar nomes e topónimos, condições minudentes e assíduas reservas, molhando os beiços, a intervalos, num cálice de moscatel, o que originava a que se desprendessem, de sua língua, a modos que consteladas, realmente, palavras como Lagares e Aveleda, boucinha e passal e outras que tais."
A prosa... sim, a prosa. É como lama. Estou preso. Não consigo avançar um centímetro sem que alguma vírgula maldita me prenda. E o que está a dizer esse homem? Que raio nos está a dizer Mário Cláudio? Que língua é esta, meu Deus?
Este tipo de linguagem é precisamente aquilo à que George Orwell se referia no ensaio (no inglês original) "Politics and the English Language", escrito há quase 70 anos. Nele, Orwell criticou uma nova tendência na língua inglesa, uma que ele considerava ser intencionalmente vaga e insonsa, à semelhança do discurso usado pelos políticos.
Mas, de acordo com Urbano Tavares: «A Quinta das Virtudes, pelo intenso colorido verbal, pelo caudal riquíssimo da informação, pela beleza e veracidade dos grandes quadro históricos (...) é um daqueles romances de ampla respiração que fazem data numa leitura»
Se repararem bem, verão que Urbano Tavares não disse realmente nada. Pelo menos nada de valor. Sabem porquê? Porque, eu punha as minhas mãos no fogo, nem ele terminou o livro.
"Celebrou-se o casamento de José Pinto de Meirelles com Dona Francisca Clara de Azevedo Pinto Aranha e Fonseca, aos vinte e quatro de Julho de mil setecentos e cinquenta e seis, na igreja de São Bento da Vitória. Era a festa de Santa Cristina, e selecionara a noiva tal data, entre outras duas propostas, em virtude da dedicação que sentia, desde há muito, pela mártir, cuja hagiografia lera, entre outra heteróclita narração de cordel, por uma entrada de Outono, em que um trovão se diria, infinita e ameaçadoramente, suspenso das quebradas."
O mais triste nisto tudo, e o que me causa maior frustração, é que enterrado debaixo de todo este palavreado, estão duas personagens que eu gostaria de conhecer melhor. Acho que os seus nomes são Francisca Clara e José Pinto de Meirelles; está aqui algures uma história de duas pessoas (possivelmente mais) algo humanas, uma história que perspetivava ser interessante, so que é necessário criar empatia com as personagens para se querer continuar a virar as páginas, e torna-se impossível fazê-lo quando 90% da narração é dedicada aos gatos e às paredes e aos pardais e aos servos e às colinas e ao clima, e mais clima, numa prosa lamurienta, elitista, que nos obriga, não só a ter o dicionário aberto, mas, também, a tomar comprimidos para a concentração, de modo a conseguir lê-la.
E olhem que gosto de livros difíceis, livros que me fazem suar, franzir o sobrolho, enquanto leio e releio a mesma coisa 50 cinquenta vezes, pois a mente começara divagando a meio. E, como já disse, quando começo um livro, tento sempre terminá-lo, por mais horrivel que seja; consegui acabar "I'm in Love With a Popstar", de Margarida Rebelo Pinto, por exemplo. 
A diferença é que em livros como " O Outono do Patriarca" e "Rumo ao Farol" há um propósito para a prosa pouco digestiva, há um conceito por detrás. No caso do primeiro, o objetivo é expressar a fusão de um homem com o seu mito; no segundo, retratar a permanência de um momento, de uma memória. Estes autores souberam também focar-se nas suas personagens, que, ao fim e ao cabo, são a parte fundamental de uma história, de qualquer história, pois é através delas que nós vivemos dita história.
Mário Cláudio não fez nada destas coisas. Em "A Quinta das Virtudes" não consigo ver um propósito para a prosa histórica e bibliotecária, para além do facto de o próprio autor ser um historiador e bibliotecário; tampouco vejo interesse em retratar as pessoas que habitam este mundo, ficando, desde a primeira página, que as estrelas não são elas, mas sim a prosa.
Um autor tem sempre uma escolha, quando se senta para escrever um livro: escrever para comunicar com um público, ou escrever para se agradar a si mesmo. 
Kafska é um exemplo de alguém que escreveu somente para si mesmo, daí as suas histórias terem estruturas tão pouco convencionais, e daí, também, ter pedido ao irmão que queimasse as suas obras quando ele falecesse (pedido que, felizmente para nós, o irmão ignorou). 
O resto de nós - e estou a me incluir aqui, não por estar no mesmo patamar que Mário Cláudio ou Kafka, mas por ser um mero aspirante - escreve para um público, quer o queiramos admitir ou não. 
Para mim, os grandes escritores são aqueles que, face a essas duas opções, escolhem a terceira: escrever para si mesmos, tendo em conta que as suas obras serão lidas por terceiros.
Mário Cláudio escreveu para si próprio; escreveu, talvez, para se expressar artisticamente, de uma forma que lhe desse prazer, ou talvez ainda, para dar flex, para se exibir perante os seus colegas de profissão. Seja como for, uma coisa é certa: não teve o público em mente. Se tivesse tido, não teria enterrado a sua história de tal maneira debaixo da prosa mais sufocante que alguma vez li.
"E, à medida do progresso da ereção da Casa das Virtudes, eis que, em Francisca Clara, que tão escassamente se havia afeiçoado ao Porto, uma extentíssima efabulação da cidade se ia desenvolvendo, apreendida de dois livros, glosada por um sonho que, de modo sorrateiro, nela se imiscuía. Era uma urbe esmaltada, em pergaminho, que se lhe deparava, assim, a qual Menelau, cônjugue inábil de Helena de Tróia, gloriosamente fundara, logo de belicosos lacedemónios a povoando, e a ela vinham encostar-se as galeras, estivadas de ânforas de vinho e de azeite, a descarregar, quando era caso disso, um filósofo togado, de barba marmórea, que os jovens doutrinava, com princípios rigorosos e implacáveis silogismos."
Um autor tem outra escolha, quando se senta para escrever um livro: priorizar o conteúdo, a mensagem, a história, ou a forma como ela é transmitida, o embrulho, a prosa. Entendam que, quando digo história, neste contexto me refiro ao que está a ser transmitido: a moral, a mensagem. Para mim, é isso o essencial, e o que fez de histórias como o "Capuchinho Vermelho", ou mesmo o Épico de Gilgamesh, histórias eternas, que vêm sendo transmitidas oralmente desde os primórdios da raça humana, quando mal sabiamos falar, quanto mais escrever.
Infelizmente, são livros como "A Quinta das Virtudes" os que mais presam os críticos portugueses (e podia referir os de cinema também, mas este é um blogue literário...), e enquanto assim for, não vamos andar para a frente. Esses senhores se consideram os donos da língua, acham-se superiores às pessoas comuns, por isso criam a sua própria linguagem e lá vão eles, masturbando-se uns aos outros, premiando-se uns aos outros, parabenizando-se uns aos outros. Depois perguntam-se por que essas mesmas pessoas, que eles desprezam tanto, não compram os seus livros. E porque a literatura em Portugal está o que está: uma miséria, dominada por duas ou três Editoras, disfarçadas de vinte, que vão dividindo os lucros entre si, importando bestsellers, vendendo livros de culinária e, quando tudo o resto falha, fazendo mais uma edição de Saramago ou Eça, para promover a literatura. 
Tudo o que é português é velho! Os novos não têm espaço, não nas livrarias, não nas Editoras. As nossas únicas alternativas são vanity publishers como a Chiado e a Cordel d' Prata, que, desde que lhes paguem, publicam qualquer um (o que também não promove a qualidade).
Mas, como anunciou Eduardo Nascimento, os ventos vão mudar. Há de surgir um Bukowski, um Hemingway, alguém que vá revolucionar a arte da literatura em Portugal; alguém que mostre a esses bodes velhos que verdadeiras histórias não necessitam de palavras caras, nem de grandes floreados, verdadeiras histórias podem ser entendidas até por crianças, e contadas por bêbados em bares sujos. Há de vir alguém que mande lixar as grandes livrarias, onde caras pretas não aparecem, onde as vozes dos marginalizados não são ouvidas e as histórias das minorias não são contadas, e então essa pessoa vai dizer: "Chega! Já que eles não nos aceitam, criaremos o nosso próprio caminho".

terça-feira, 5 de abril de 2022

O génio de Bukowski

Vou escrever este post como Bukowski.
Bukowski era um homem que acreditava que as coisas devem ser ditas diretamente, sem rodeios. Sem punhetadas. E ele dizia essas coisas em frases curtas e grossas. 
Bukowski acreditava plenamente na essência das suas palavras, como tal não necessitava de muitas para dizer as coisas. Ele escreveu muito. Todo o tipo de coisas: crónicas, poesia (muita poesia), contos e alguns romances também.
Acredito que Bukowski é o mais puro contador de histórias entre todos os escritores que já nasceram. Acredito plenamente nisso, tendo lindo apenas o "Correios", seu primeiro romance, "Misto quente", seu magnum opus, e uma coleção de contos loucos chamada: "A sul de nenhum norte".
Bukowski dizia as coisas de forma crua, sem rodeios. As suas personagens geralmente eram bêbados, bêbadas, vadias e porcos. Bebiam todos muito, fumavam todos muito e fodiam todos muito. Os homens numa história de Bukowski, ou fodiam bué, e tinham um pau de 30 cms, ou não o conseguiam levantar. Ou estavam apaixonados por manequins, e são abordados por bêbadas quando estão a beber no bar, e violam mulheres e elas gostam, ou então não entendem as mulheres.
Bukowski pode ser considerado misoginista, e é por muitas pessoas. E talvez seja. Mas de certa forma, Bukowski era um defensor das mulheres, pois ele via lá dentro delas, o desejo de serem porcas. Um privilégio que a sociedade não lhes permitia naqueles tempos. Mas Bukowski sempre viu, por mais que as odiasse, o quão oprimidas as mulheres eram. Obrigadas a serem mães, donas de casa, professoras, quando algumas querem ser fodidas por porcos, e fantasiam com violações.
Em suma, Bukowski era uma personagem complexa. Escrevia sobre os derrotados da sociedade, pois ele próprio foi um derrotado. Escrevia sobre a ralé, que frequenta bares nojentos às altas horas da madrugada, pois ele próprio o fez. Escreveu sobre malta que viaja o mundo, pois preferem passar fome, viver a vida de um mendigo, que jogar o jogo. O jogo do sucesso: lamber o cú ao chefe, subir na carreira, casar, fazer uma filha, um filho, metê-los na faculdade, arranjar uma amante, divorciar, e repetir.
Bukowski preferia estar sozinho, embebedando-se com o seu vinho, comendo alguma groupie tarada que fantasiasse comer o "velho safado", indo às corridas de cavalo, e escrevendo, ocasionalmente, sobre a ralé.

Recomendação - A Sul de Nenhum Norte

"A Sul de Nenhum Norte" é Bukowski em toda a sua irreverência, em todo o seu esplendor e displendor; neste livro encontrará alguns...